O
espírito desbravador sempre fez parte da essência humana. Graças a ele,
continentes foram descobertos e regiões foram ocupadas, criando os mais
diferentes tipos de cultura.
No
entanto, quando se trata de mulheres, a questão se torna um pouco mais
complexa. Ao longo da história, elas foram vítimas de uma construção social do
papel feminino que relegou as mulheres ao ambiente doméstico, tornando um tabu
qualquer tipo de ocupação do espaço público sem a companhia masculina.
Esse
tipo de cultura machista persiste até os dias atuais. Prova disso foi o
assassinato de duas turistas argentinas no Equador no início deste mês. Marina
Menegazzo e María José Coni foram mortas a pauladas por dois homens que
tentaram abusar sexualmente delas. A notícia do crime gerou uma onda de
críticas nas redes sociais, onde muitos acusaram as turistas de “pedirem por
isso” por estarem viajando sozinhas. “Sozinhas”, no caso, significa sem a
companhia de um homem.
As
críticas revoltaram mulheres apaixonadas por viagens e deram início à campanha
#ViajoSola, em que mulheres que viajam sozinhas ou acompanhadas de uma amiga
compartilham fotos mostrando que, assim como os homens, elas também têm
espírito aventureiro e não devem ser julgadas por isso.
Uma
representante deste perfil é Nathaly Fogaça, criadora da página do Facebook
Chão da América e do blogEstudante do Mundo, onde compartilha suas experiências
e se define como “publicitária por formação, mochileira por paixão”. Ela conta
que a paixão por viagens despertou em 2012, após uma visita a amigos da
Universidade de Integração Latino Americana (Unila), que fica em Foz do Iguaçu,
no Paraná, e é frequentada por alunos de vários países da América Latina. O
contato com eles fez despertar a curiosidade sobre a cultura latino-americana,
e no mesmo ano ela decidiu viajar pelo continente.
“Foi
incrível. A cada nova descoberta eu me apaixono ainda mais pela América do Sul.
Cada país e povo têm suas particularidades, sua história, sua gastronomia,
música, literatura e provar isso por conta própria é incrível. Já estive em
alguns países, mas fui de maneiras distintas. De avião/ônibus, fui para
Uruguai, Bolívia e Argentina. De carona, fui para Argentina, Chile e Paraguai,
além de alguns lugares do Brasil, sempre mesclando viagens solo, com amigos ou
com pessoas que conheci na internet.”
Nathaly
diz que em todas as viagens que fez inclusive a cidades brasileiras, foi
alertada de que estava correndo risco. No entanto, ela afirma que viajar
sozinha não é tão perigoso quanto parece e que o medo é fruto de notícias
sensacionalistas e da falta de experiência própria das pessoas.
“As
notícias sensacionalistas estão ao nosso redor a todo instante e pessoas que se
acostumam e aceitam tal conteúdo sem ter tido experiências próprias, vão se
basear nestas para definir o que é seguro ou não. Sempre me falam que viajar
sozinha é perigoso, mas todos que me falam isso nunca saíram de casa. E todas
as manas que já saíram por aí em viagens solo sabem bem do que falo: na estrada
as coisas acontecem, as pessoas ajudam e nos sentimos (às vezes) mais seguras
do que na nossa cidade. Não é necessariamente uma crítica a quem tem medo
disso. Consigo entender tal receio. Na verdade, é um pedido para que cada um vá
e tenha sua própria experiência.”
Em
suas viagens, Nathaly conheceu outras mulheres mochileiras como ela, tanto
pessoalmente quanto virtualmente. “No Chile, um país que tem a carona muito
forte na sua cultura, conheci garotas que viajavam assim também, embora muitas
vezes acompanhadas de amigos homens. Apenas uma vez me reuni com duas
mochileiras na estrada e viajamos juntas por um dia. Já no Brasil, não tive a
mesma sorte. Encontrei apenas depois das minhas viagens mochileiras com a mesma
sede de aventura. E são muitas!”
Segundo
ela, o único desconforto foram os assédios verbais (as chamadas “cantadas”) de
alguns motoristas que deram carona a ela. “Os motoristas não entendem o que uma
mulher sozinha está fazendo ali, viajando. E sempre aproveitam para tirar uma
casquinha. É mega desconfortável, mas todos eles sempre respeitaram meus ‘nãos’
sem grandes problemas”, diz Natahly. Preconceito, de fato, ela diz ter sofrido
apenas uma vez, quando namorou um rapaz chileno. “Ele tinha um pensamento
conservador de que mulheres estão aqui para cuidar da casa, filhos, servir seus
maridos…foi difícil explicar outro lado da moeda para ele”.
No
entanto, Nathaly concorda que, embora tenha avançado bastante, “nossa sociedade
ainda é muito machista e acredita que mulheres não ‘foram feitas’ para andar
livres e sozinhas mundo a fora”.
“Desde
sempre nos foi imposto como atividade principal, cuidar da casa e dos filhos e,
ainda hoje, qualquer coisa que saia dessa ‘regra’ é vista como loucura: ser
solteira, ir morar sozinha, decidir não ter filhos, ser a principal responsável
pelas contas do lar, decidir focar na carreira, mochilar sozinha….nenhuma
dessas atividades nos é ‘permitida’. Quando homens decidem fazer coisas do
tipo, principalmente mochilar, são definidos como desbravadores, corajosos, destemidos.
Porém, quando nós fazemos isso, insistem em nos chamar de loucas, em perguntar
se não temos medo e apontar inúmeros motivos para desistirmos; poucas são as
pessoas que nos incentivam de fato.
Questionada
sobre as críticas às turistas argentinas assassinadas, ela afirma que elas
comprovam o tabu que ainda existe sobre o tema, mas defende que a violência não
pode ser usada como justificativa para tolher a liberdade feminina.
“O
trágico ocorrido com as mochileiras mendocinas veio para confirmar tudo isso.
Mesmo viajando juntas, as pessoas insistem em afirmar que elas estavam
sozinhas, entre outros argumentos que tentem justificar a ação dos assassinos.
Elas não estavam sozinhas e nada vai justificar a violência que sofreram. Nada.
Somos livres e devemos estar seguras em qualquer parte do mundo. Acompanhadas
ou não. Nada justifica a violência.”