A
mais importante Corte do País é, também, uma das que mais acabam sofrendo
desvio de sua função natural. Criada para analisar questões constitucionais e
julgar deputados, senadores e o presidente da República, o STF (Supremo
Tribunal Federal) acumulou a função de decidir sobre recursos vindos de
instâncias inferiores, aumentando o fluxo de trabalho dos ministros.
Responsável
por casos de grande repercussão, como o do mensalão, o Supremo também tem a
responsabilidade de julgar os chamados crimes de bagatela, de menor potencial
ofensivo e valor financeiro baixo. Um exemplo deste crime é o furto de objetos
de pequeno valor, com a devolução posterior do objeto ao dono.
Na
última semana, um caso deste tipo se tornou notório. Entre os mais de 25 mil
processos distribuídos apenas em 2014 na Corte, a DPU (Defensoria Pública da
União) conseguiu um habeas corpus para um condenado a um ano de prisão por
furtar um par de chinelos no valor de R$ 16.
O
ministro Luís Roberto Barroso (STF) decidiu libertar o condenado por entender
que o que estava sendo criminalizado, na verdade, era a condição social do
autor do crime, e não ato em si.
Para
o defensor público da união Gustavo de Almeida Ribeiro, responsável pelos
processos perante o Supremo, há um entendimento diferente de algumas
instâncias, que acabam causando essa divergência. No final, elas acabam sendo
resolvidas no Supremo.
—
As instâncias inferiores tiveram um entendimento mais rigoroso que o próprio
Supremo, tanto que não concederam [o habeas corpus], enquanto o Supremo
concedeu.
Segundo
Márcio Kayatt, advogado e conselheiro federal da OAB-SP (Ordem dos Advogados do
Brasil), o que permite ao STF analisar estes casos é a vasta gama que a
Constituição garantiu para que questões como essas entrem na pauta dos
ministros.
—
O Supremo acabou tendo uma amplitude em sua atuação na medida em que a nossa
Constituição de 1988 é muito ampla, é uma constituição que trata de,
praticamente, todos os temas. Nesse sentido, essa grande quantidade de recursos
que aportam ao Supremo acabam trazendo sim, muitas das vezes, questões
constitucionais, por culpa da amplitude do texto constitucional.
Com
isso, lembra Kayatt, questões que interferem na liberdade do indivíduo terminam
com recurso na Corte, que é o caso das questões envolvendo os habeas corpus.
Com isso, o tribunal acaba tendo sua pauta inviabilizada. Para evitar isso, o
conselheiro acredita que se deve criar um sistema de filtros, para evitar que
casos como esse atrapalhem o fluxo de trabalho dos juízes.
—
Na prática, é um tribunal que está inviabilizado. Um tribunal que tem questões
pendentes de julgamento de 10, 15 anos, não pode ser considerado um tribunal
que está em sua plena atividade. Nessa minha avaliação não vai uma crítica aos
ministros, ao contrário. Os ministros fazem, até, mais do que está ao alcance
deles, mas é preciso repensar o sistema.
Gustavo
Ribeiro destaca que, em várias situações, os juízes de primeira instância
optaram por reconhecer o princípio da insignificância (crime de bagatela), mas
o Ministério Público acabou recorrendo sobre eles. Na segunda instância e no
STJ (Superior Tribunal de Justiça), os juízes terminaram compreendendo que os
autores deveriam ficar presos.
Em
alguns casos, quando o Supremo compreende que o crime realmente não é ofensivo,
aplica este princípio, e a Justiça extingue a ação penal, lembra o defensor.
Com isso, o réu é absolvido.
"Desvio"
de função
Em
um estudo divulgado em 2011, especialistas apontaram um desvio na função do
Supremo. Criado para ser uma corte constitucional, que avaliaria apenas
questões de mérito acerca da Constituição e julgaria parlamentares e os chefes
do Executivo nacional, seu papel estaria mais para o de "Corte recursal
suprema".
Segundo
o balanço, de todos os processos que entraram na Corte em 2009 e 2010, 0,5% foi
constitucional, 7,8% foram ordinários e 91,69%, recursais.
Ainda
em 2009, 45 habeas corpus foram concedidos com base no princípio da
insignificância.
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