Algumas coisas devem ser mantidas secretas. É difícil, por exemplo, argumentar que o interesse público impõe a publicação dos desenhos técnicos de uma bomba atômica. A questão é menos clara, contudo, quando uma informação científica com o potencial de disseminar o terror pode também impedir que esse terror seja disseminado.
Tome-se a gripe aviária. Ela matou mais de 330 pessoas desde 2003. Isto pode não soar muito alto, mas representa 60% dos 570 casos conhecidos da doença. A única razão de o número de mortos não ser maior é que aqueles que pereceram contraíram o vírus diretamente de uma ave (geralmente de uma galinha). Para a sorte de todo mundo, a doença não é facilmente transmitida entre humanos.
Mas pode ser que isso mude. Este é o fardo da pesquisa desenvolvida no ano passado por duas equipes de cientistas, uma nos Estados Unidos e outra na Holanda. Elas fizeram várias alterações nos genes do vírus da gripe asiática para produzir uma versão que pode viajar pelo ar de furão para furão. E furões são, neste contexto, boas aproximações para pessoas.
As causas dos pesquisadores eram puras. As mutações que eles combinaram para produzir a sua gripe exterminadora de furões já existem no ambiente. Há muitas chances dessas mutações se unirem naturalmente e iniciarem uma pandemia. Ao antecipar essa recombinação, as duas equipes salientaram o risco e deram aos pesquisadores de vacinas uma vantagem de largada na consideração de como combater essa ameaça e, ao isolar as mutações, estimularam esforços de monitoramento, os quais até então não eram feitos com muito afinco.
Ou, aliás, eles teriam feito isso caso tivessem sido autorizados a publicar seus resultados. Não foi o caso. Tanto o governo americano quanto o holandês viram na pesquisa não uma sensata antecipação de uma ameaça, mas uma ameaça em si. O temor dos governos era de que vilões pudessem repetir o experimento em algum lugar e transformar o resultado em uma arma. De modo que a publicação dos detalhes técnicos da pesquisa das duas equipes foi proibida.
A ameaça da gripe é real. A chamada gripe espanhola, que infectou 500 milhões de pessoas nos anos de 1918-1919, tomou a vida de uma em cada cinco pessoas contaminadas. Epidemias de gripe subsequentes, apesar de não terem sido tão virulentas, causaram grandes problemas à humanidade em todas as suas versões. Mas o terrorismo também é real. Apesar de não haver caso conhecido de guerra biológica nos últimos 10 anos, muitos países contemplaram a ideia; e há a preocupação de que alguns grupos terroristas, motivados não por agravos políticos específicos, mas por um ódio generalizado ao ocidente, possam liberar o caos incontrolável da epidemia viral puramente por maldade. Então quem está certo – os pesquisadores que querem publicar os seus resultados, ou o governo que quer impedi-los?
Neste caso em particular, provavelmente a razão está com os pesquisadores. E, para o crédito deles, as autoridades parecem ter reconhecido isso. Após meses de deliberações conflituosas envolvendo os virologistas mais renomados do mundo, editores de periódicos, especialistas em segurança, filósofos e especialistas em políticas públicas, os americanos trocaram de posição no dia 20 de abril. Os holandeses também estão repensando a sua posição.
A razão é que, como dizem os bioterroristas, os humanos empalidecem perante a natureza. Até os serviços de segurança americanos, dos quais se espera uma decisão cautelosa, parecem concordar que as chances de um ataque bioterrorista são altas. A natureza, em contraste, tem experiência na área. Da peste negra à gripe espanhola à AIDS, as bactérias e vírus causaram mortes numa escala com a qual os terroristas e ditadores podem apenas sonhar. Quanto mais se amordaça os cientistas ou se oculta dados, mais difícil fica encontrar a cura; e também corre-se o risco de espantar jovens e cientistas talentosos para campos científicos menos conflituosos. Logo, no momento, a ameaça natural parece maior do que a artificial.
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